sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O divã

Quando eu era criança morava em um prédio onde os vizinhos se viam com certa frequência e, aparentemente, se davam bem. Ainda moro em apartamento, não mais o mesmo, mas a impressão de convívio social diminuiu, não sei o nome de alguns dos meus vizinhos, cada um leva a vida dentro de seu respectivo quadrado. Sobre o apartamento da infância. Meus vizinhos de porta eram o Sr Bonifácio, Dona Carmem, Marcelo, Fábio e Sidney. O último dos filhos tinha quase minha idade na época, eu três anos ele cinco. O Sidney vivia me enganando, trocava os brinquedos quebrados dele pelos meus bons. A mãe, ao perceber a gaiatice do menino, desfazia as trocas. A Dona Carmem, ao que me recordo, era uma boa mulher, tinha o semblante um pouco triste, mas também, pudera, apanhava do Sr Bonifácio com regularidade. Os filhos mais velhos eram bonitos e tinham adesivos na janela dos quartos, também brigavam bastante. Uma vez o Marcelo chegou chorando na minha casa com um garfo espetado na mão...

Os outros vizinhos, de quem me lembro, eram a Jane e o Jacques, pais da Jaqueline e do Jairo que tinham também uma idade aproximada da minha. Lembro pouco deles, a Jane era uma mulher morena, alta, cabelos compridos e bonita. O Jacques era suíço e não me lembro dele sóbrio, era muito amigo do meu pai, por isso íamos sempre ao apartamento deles. Tínhamos ainda mais três amigas. A Dona Maria cuidava de mim quando meus pais precisavam sair, no apartamento dela existiam muitos brinquedos, muitos mesmo, canetinhas, lápis de cor, tudo o que uma criança gosta, mas não havia nenhuma criança e meus pais nunca me explicaram direito a história da Dona Maria. Para fechar o quadro, Beth e Sônia, elas eram um casal, para mim, era tão normal que elas fossem um casal quanto o eram meus pais e os outros casais convencionais, tratavam a mim e meu irmão com muito carinho, gostavam que eu as chamasse de tias. Uma vez fiquei doente e meu pai estava sem o carro, no meio da madrugada a tia Beth foi chamada para me socorrer.

Não acredito que as pessoas nasçam más, nem tampouco que nasçam boas. Os conceitos são introjetados com mais ou menos eficácia de acordo com o ambiente em que somos criados. Algumas coisas são instintivas. Eu ficava triste ao ver o Sr Bonifácio maltratar a Dona Carmem, não gostava de ver o Marcelo e o Fábio brigando e achava estranha a fala arrastada do Jacques. Por outro lado, a Beth e a Sônia nada mais eram que a tia Beth e a tia Sônia que me recebiam com carinho quando íamos visitá-las.

Os anos passaram, conceitos foram introduzidos, um molde foi criado e minha forma de pensar se modificou desde então. A gente conhece pessoas, passa por situações, observa coisas e vai tentando se enquadrar ou fugir daquilo que seja politicamente correto.O politicamente correto guarda o preconceito para si, combina os sapatos com o cinto e a bolsa, vai à igreja toda semana e faz questão de dizer eu te amo à esposa na frente do maior número de pessoas possível. O politicamente correto é bom porque é obrigado a isso, só sabe sê-lo para não deixar o Papai do Céu triste, e não porque aprendeu a ter o coração bom amando o ser humano, não é uma ação gratuita, mas uma barganha. Claro que de tanto praticar atos de bondade forçadamente acabamos nos tornando pessoas idôneas com bons atos quase que espontâneos, mas em meio a isso, onde fica o ser bom por querer ser, por achar que a vida merece esse sentimento, a ação gratuita?

Quase vinte e seis anos depois, percebi que o ato de ser bom começa pela honestidade que dispenso a mim. Depois disso, as coisas "se iluminam".

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