quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Agenda

Depois de amanhã entrarei em sua vida. Hoje observarei o modo como vira a página do livro e seu jeito de inclinar a cabeça ao ler, acompanhando as frases linha por linha com o dedo indicador. Observarei a porta se fechando quando você entra e cumprimenta a todos com timidez. Enquanto assobia uma canção e usa as gírias que inventou, no momento em que afastar o copo para o meio da mesa. Atentarei para o olhar que me acompanha e finjo não perceber. Quando conversarmos, prestarei atenção no assunto e não me perderei nos labirintos do seu rosto, de onde custo voltar com respostas. Tudo isso farei hoje, pois o amanhã a Deus pertence, mas depois de amanhã entrarei em sua vida.

Até lá, digo sem dizer.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Ex nihilo

 
Tenho livros que não leio, CDs que não ouço, cérebro que não uso, coração que não bate. Tudo é não, o sim me nega e me recusa. Como em um filme repetido, com final conhecido, seguem os dias no cárcere. Sou prisioneira imaginária da repetição dos dias que se foram, dos que nunca terminam e dos que insistem em não chegar.


Construí meu cárcere em um país distante, isolado pelo tempo, situado em mapa algum, onde as ruas divergem na direção, sem paralelo. Em busca do sentido das coisas, caminho pela cela, ampla como meu ego e tão pequena quanto permite a mediocridade. Não o encontro.

As músicas não me dão um sentido, os livros, já não os quero, embora os ame e neles, talvez um dia volte a me refugiar em busca de um sentido fugidio e faça deles não o cárcere, mas o retiro espiritual de minhas veleidades. Não vejo nada para além de minha prisão sem janelas e penso na inexistência de algo extra-muros. Não há transcendência.

Tenho sentido o esmaecer de meus sentidos, quando me deixarem por completo restarão os pesadelos que, assim como tudo, são a repetição de velhos medos e recalques, impossíveis a mim de explicar e quando estes também se forem, nada me restará além da estrada asfaltada e retilínea por onde tantos passam e que é fácil de seguir, ali encontrarei um sentido, haverá bem e mal e eu em relação a eles, jamais para além.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Just a perfect day

  Assim que bateu a porta atrás de si, jogou-se pesadamente no sofá. Sem ligar o interruptor, caminhou até o toca discos e escolheu o de sempre, o disco que ouvia em noites como aquela, deixou que tocassem as primeiras faixas, foi criando o clima adequado, aproximou-se da janela, olhou o céu apagado da noite, sem estrelas, apenas iluminação da rua e resolveu abrir uma garrafa de vinho barato. À medida que as faixas avançavam os sentimentos cresciam na mesma proporção até que, por fim, chegou o ápice, Perfect Day, a letra o deixava triste, a voz de Lou Reed o desesperava e a melodia, Deus! Simplesmente não podia caber em si de tanta dor, a dor que não partilhava com ninguém e que era egoistamente toda sua. Queria que toda ela estivesse dentro dele e que o fizesse explodir, que no dia seguinte, quando não aparecesse no escritório, a chamada na secretária eletrônica encontrasse sua cabeça partida em milhares de pedaços e que seu peito, estivesse aberto e vazio. Acalentando todos estes pensamentos e com o vinho fazendo efeito cantou a plenos pulmões o refrão melancólico: 'it's such a perfect day'. Ele nunca havia passado com ninguém um dia como aquele descrito na música , nem com os pais, amigos ou qualquer mulher de ocasião e a mais remota idéia de que jamais o passaria aumentou ainda mais sua dor e desespero. Patético, se jogou na grade da varanda e chorou, muito, até sentir que toda a dor do mundo tomava conta de seu corpo. Abraçado à grade, bêbado e dolorido deixou que a garrafa escapasse por entre as barras, morava no sétimo andar, acompanhou sua queda com os olhos semicerados, por fim, escutou o som estridente da garrafa se partindo e pensou: ‘ihh’. Segundos após seu pensamento ouviu um grito de horror vindo lá de baixo, não era do demônio que o aguardava e nem de uma potencial vítima, mas do síndico:
- Filho da puta! Tá querendo matar alguém?
- Não... não, Seu Zé, desculpa.
- Vê se dorme, seu pinguço, e desliga essa música de viado!
Envergonhado, mas satisfeito voltou para a sala, afrouxou a gravata, pegou o telefone e discou para o número que já estava na memória do aparelho.
- Laurinha? Viu... ou a gente estréia logo essa peça ou os vizinhos vão me mandar embora... a cena da garrafa já tá perfeita...

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Fugaz

Naquele dia resolveu sair de casa com seu tênis rasgado. Choveu e fez muito frio. Havia saído cedo para procurar emprego. Junto aos diplomas, documentos e comprovantes levava o endereço para o qual se dirigia, uma rua com nome de estado americano em um bairro com homônimo nova iorquino. Anexado a tudo isso carregava a impressão de que nada em sua vida durara muito tempo e pensava se por força das circunstâncias ou por qualquer falha de caráter manifestada na idade adulta. A despeito de suas suspeitas, tinha algumas certezas, entre elas a de que se cansava rapidamente de tudo e se perguntava até quando esta constante mutabilidade perduraria, apenas isso seguia duradouro em sua vida. Perguntava-se também se assim como ela a chuva se cansaria e pararia de chover para que pudesse deixar o botequim onde se abrigara, comera uma coxinha e tomara chocolate quente, e então seguir para o emprego do qual gostava, e queria abandonar. Ao abrir o guarda chuva na porta do bar, sentiu algo molhado em si e o frio percorreu seu corpo. Havia escolhido o calçado errado, estava certa, contava também com a certeza de que algo naquele dia duraria. Teria que trabalhar pelo restante do expediente com as meias úmidas, a única conclusão a que chegara naquela semana.

domingo, 5 de junho de 2011

7:30 a.m. Parte I

Sentada no banco mais alto do ônibus, torta e preguiçosa, avistou-o do lado de fora, era a primeira vez que se viam. Enquanto o olhava, notou que ele também a observava e a conversa telepática iniciada naquela noite perduraria até o desembarque.

Ele se aproximou da catraca, passou o cartão no aparelho, sem que deixasse de olha-la, a frágil comunicação entre os dois aos poucos ganhava corpo, ela sabia que não podia desviar o olhar e que devia dizer a ele tudo o que se passava em sua mente por meio de seus olhos. Ele caminhou pelo corredor e decidido se sentou ao lado dela, ela havia se esquecido, ou, distraída que era, não percebera que o assento ao lado da janela estava desocupado, surpreendida pelo aceno de cabeça, que lhe devolvia ao mundo real, consentiu que o rapaz passasse entre seus joelhos e o banco da frente para, enfim, acomodar-se a seu lado e mais uma vez abaixar e levantar a cabeça num movimento rápido, quase nervoso, ainda olhava para ela, que retribuía numa tentativa desajeitada de transparecer certo ar de mulher fatal.

Desligou a música que ouvia, e se porventura ele resolvesse puxar assunto? Ele também ouvia música ou, talvez, como ela, também desligara o aparelho já que ela não escutava qualquer ruído vindo de seu fone. Talvez, também como ela, tivesse se esquecido de tirar os fones do ouvido, para que o outro percebesse a vontade de um diálogo vocalizado.

Se olhavam indisfaçadamente, nada diziam, muito comunicavam. Ele adivinhava o pensamento dela, pensavam o mesmo, ainda que os olhos não se encontrassem podiam senti-los no momento em que realizavam pequenas incursões por seus corpos.

Ela percebeu que se nada fosse dito naquele instante não seria também posteriormente, não haveria um depois, provável que não, olhou para o lado, sua boca se abriu numa tentativa de despedida, mas nada saiu, sinalizou ao motorista para descer no próximo ponto, levantou-se pesadamente e de costas para ele se lamentou, já na porta do coletivo virou-se pela última vez e percebeu que ele a acompanhava com o olhar. Desembarcou, agora era ela do lado de fora do ônibus e ele no assento mais alto, a troca de olhares continuou até o ônibus se afastar. O ônibus passou, o momento também, ele passou... e ficou.