domingo, 25 de abril de 2010

Decifra-me, ou te devoro


Assistindo a um programa no canal japonês me dei conta de que às vezes esse país realmente parece ser do outro lado do mundo, os costumes são inteiramente diferentes e incompreensíveis. Em pleno século XXI, o maior canal de TV do Japão ainda veicula, aos domingos, concursos de canto amador, no qual participam jovens, idosos, homens e mulheres, criaturas andrógenas de meia arrastão e damas em quimonos impecáveis. É difícil compreender a cultura do outro, justamente por não termos parâmetros para avaliá-la, então, encaixamos tudo na gaveta do exótico, rotulamos como superior, inferior à nossa, ou apenas diferente, achamos graça e aceitamos, mais por falta da capacidade de compreender o universo do outro, que por aceitarmos pelo que conhecemos da coisa.

A alteridade e a falta de jeito para lidarmos com ela assustam. Os japoneses, com sua cultura, parecem habitar outro mundo, mas muitas são as vezes em que sentimos as pessoas mais próximas de nós como alienígenas, ou pior, nós é que somos. Compreender o que o outro diz é uma provocação aos sentidos, nem sempre o dito é a expressão da vontade e o não dito é o maior desafio à interpretação. A verdade se esconde nos silêncios, nas reentrâncias do discurso, decifrá-los é lograr êxito, ou se perder de vez. 

Nos relacionamentos em que não há presumida afetividade as situações se desenrolam de maneira simples, natural. Você vai à padaria pede 500 gramas de mussarela, enquanto conta o dinheiro, o caixa reclama da política, comenta o jogo de ontem, você consente, ou não, e vai embora. Se esse caixa fosse o cara com quem você ficou no final de semana ou alguém que cumpriu pena na prisão por assassinar seu cachorro, a trama seria outra, provavelmente você freqüentaria outra padaria, mas levando ao extremo, se essa for a única do bairro, a conversa com o caixa, existindo, seria em outros termos. Se fizermos um juízo de valor, diremos que a mesma conversa, passada na primeira situação hipotética, se repetisse exatamente nos outros dois casos é por que os interlocutores são hipócritas, ou civilizados, como preferem alguns. Os sentimentos obscurecem nossa perspectiva.

Os discursos, sempre eles. O que escondem, o que revelam, como tentam ser ludibriantes em sua sinceridade? E seu silêncio, o que nos revela, o que tenta esconder? Álvares de Azevedo, na introdução de Lira dos Vinte Anos, advertiu o leitor sobre as duas almas que habitam o cérebro "pouco ou mais ou menos de poeta" que compuseram o livro. Talvez tenhamos todos uma natureza Jeckll e Hyde sem sermos bipolares e ao mesmo tempo em que nos revelamos, algo de nós pede pela reclusão. Falta de sinceridade, de espontaneidade? Acho que não. 

Ainda os discursos: se os sentimentos tiram a objetividade da ação, o fato incontestável é o de que devemos abolir o afeto de nossas relações objetivas, porém, não há quem consiga deixar de gostar ou desgostar de algo, logo... se nas relações de imediatismo objetivo não podemos dispor do afeto, que envia sinais confusos e também interpreta de forma equivocada, como viver neste mundo complicado onde as pessoas falam e não se entendem, ficam em silêncio e desencadeiam interpretações bizarras para explicá-lo, conversam sem parar e nada dizem? É preciso sensibilidade para entender, mas até quando? Eis as perguntas de um blog que apenas lança questões, e não as responde, de uma blogueira que também gostaria de saber por que as pessoas são tão complicadas e não dizem logo o que pensam e querem/não querem. 

P.S: um exemplo de que não estamos sozinhos no meio da rua desde o século XIX:   http://www.lainsignia.org/2004/noviembre/cul_004.htm  poema de um homem que vivenciou a lucidez que só os ébrios possuem.

1 comentários:

Tom Lambert disse...

Será que esta uma questão comum aos blogueiros? Eu também sempre me perguntei o porquê das relações humanas serem tão complicadas, e por que sempre fica o dito pelo não dito e o não dito pelo dito, algo assim.
Seria tão mais fácil se disséssemos tudo o que pensamos da forma que pensamos. Fácil seria, mas não é o que eu gostaria. Isso é uma das coisas que eu admiro nas relações humanas, não são baseadas em lógica ou sistemas (Pena, eu sou bom com sistemas) mas sim em sensações, sentimentos e pensamentos escondidos no íntimo do ser. É como meu avô diz: Pra conhecer verdadeiramente uma pessoa é preciso comer um quilo de sal com ela (Dê uma vez, eu acho).
Ótimo texto, me fez pensar!